Comentando discografias: Metallica – Parte 4: Nostalgia, ambição e o novo século

Os anos 90, juntamente com o século XX, ia chegando ao fim e o Metallica  era oficialmente a única banda da década anterior que tinha passado por cima de tudo que o rock trouxe de novo. Claro que para isso, abraçaram todas as novidades, chegando até a serem os headliners do Lollapalooza 96 (e agora que os brasileiros conhecem o festival podem ter uma ideia do quanto isso deve ter sido estranho) nos EUA. No entanto, era uma vitória triste para eles: de repente, a banda que lutou contra todos os excessos do rock estava rendida a todos eles, em todos os aspectos.

A transição para o século XXI não traria novidades e seria marcada por uma bem-vinda visita ao passado, relembrando das bandas que os inspiraram e o maior e mais ambicioso projeto da carreira deles até hoje.

Momento de transição

Garage Inc. (1998)

Garage+Inc+Disc+I+garage_inc

Depois do sensacional álbum preto, o fato é que levaria pelo menos dezoito anos para a banda voltar a fazer algo em estúdio que fosse digno do seu nome e de seu legado. Depois dos inchados Load/ReLoad, o Metallica teria um tempo de quase ostracismo dentro do estúdio e um longo período de seis anos separariam esses do próximo álbum da banda. Até isso acontecer, duas verdadeiras pérolas (em meio a tempos tão difíceis) surgiram. A primeira foi Garage Inc. .

Com dois discos (o primeiro com gravações inéditas, o segundo uma junção de vários lados B acumulados ao longo dos anos, mais o EP Garage Days Revisited), Garage Inc. é um álbum feito com covers das bandas que mais inspiraram o Metallica. Normalmente, esse é o tipo de lançamento meio cretino que uma banda faz quando se encontra em crise, mas no caso deles, não poderia ser mais válido. Apesar de algumas músicas remeterem a nova fase, foi a melhor forma dos fãs antigos relembrarem do passado da banda, já que a seleção das músicas foi certeira e admirável, passando de coisas mais óbvias como Thin Lizzy e Diamond Head, até outras mais inusitadas, como Nick Cave e Bob Seger.

Ele já começa melhor do que qualquer coisa dos álbuns anteriores, com uma versão heavy metal de “Free Speech for the Dumb”, da banda punk Discharge, além da animada “It’s Electric” (Diamond Head) e “Sabbra Cadabra” (Black Sabbath), um dos covers em que a banda fez questão de tocar exatamente como na versão original,

Mesmo as baladas aqui são primorosas: “Turn the Page” (Bob Seger) tem um vocal e interpretação impecáveis de James e é uma das que consegue reinventar de forma tão perfeita a versão original que chega a superá-la (algo que também acontece com o cover de Misfits, “Die, Die My Darling”, que ganha uma versão típica do Metallica dos velhos tempos). O cover de Lynyrd Skynyrd, “Tuesday’s Gone”, também é um dos mais belos momentos do álbum.

O Blue Öyster Cult também foi homenageado com um cover de “Astronomy”, uma das melhores músicas que o Metallica fez naqueles anos. Por último, entre as presenças mais óbvias do álbum, temos um longo medley de 11 minutos com algumas músicas do Mercyful Fate, outra das maiores inspirações da banda. Por outro lado, num território mais estranho, Nick Cave and the Bad Seeds ganhou um inesperado cover da sua “Loverman” e o clássico “Whiskey in the Jar” do Thin Lizzy ganhou uma versão mais divertida que virou uma das músicas mais populares da banda (não por acaso, é onde a fase Load mais se manifesta nesse trabalho também).

Isso tudo são as novidades apresentadas no primeiro disco, músicas gravadas especialmente para o álbum. Já na segunda parte do Garage Inc. temos uma coleção de B-sides e reedições de EPs da banda. O contraste fica óbvio rapidamente: aquela fúria genuína do começo da carreira da banda estão evidentes aqui, em músicas como “Helpless” (Diamond Head), “Last Caress/Green Hell” (Misfits) e os espetaculares – e já clássicos – covers de “Am I Evil?” e “The Prince”, ambos também do Diamond Head. Como se não bastasse, ainda resgatam uma versão insana de “Stone Cold Crazy” do Queen e finalizam o álbum com quatro excelentes covers do Motorhead.

Numa época em que o Metallica tinha se afastado mais do que nunca de tudo o que tinha os tornado nomes essenciais para o metal, foi no mínimo curioso irem tão a fundo para resgatarem o passado. Os fãs adoraram ouvir um som que remetesse a uma época sem delineadores e integrantes se beijando (Lars e Kirk fizeram várias fotos do tipo, repudiadas publicamente por James) e a banda nunca deixa de tocar pelo menos um cover dessa coletânea em seus shows atualmente.

Por mais oportunista que tenha sido o lançamento (na prática, eles queriam mesmo era ter um produto reunindo todas as músicas que as pessoas estavam tentando arrumar de… outras formas), não deixou de ser algo bem-vindo. No ano seguinte, entretanto, a banda tornaria realidade o seu projeto mais ambicioso, novamente olhando para o passado, mas com a intenção de reinventar o que eles mesmos criaram…

Nota: 9
Preste atenção em: No primeiro disco, as cinco primeiras músicas, mais “Astronomy”, fazem valer todos os anos sem músicas inéditas realmente excelentes. E todo o segundo disco é fantástico.
Para pular depois da primeira ouvida: Convenhamos… aquele cover de “Loverman” foi meio demais né.

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S&M (1999)

SM

Quando Michael Kamen foi chamado para compor o arranjo de cordas de “Nothing Else Matters”, já tinha jogado a ideia de trabalhar em algo maior com o Metallica futuramente. Oito anos depois, isso se tornaria realidade em duas apresentações históricas com a Orquestra Sinfônica de San Francisco. Obviamente, ambas foram registradas em áudio e vídeo, resultando no CD/DVD com o sugestivo nome de S&M.

Contando com dezoito músicas remetendo a todas as fases da banda (principalmente a Load/ReLoad, uma pena, mas aconteceu na época da turnê dos álbuns), mais duas criadas especialmente para o evento, os shows trazem o quarteto em uma forma simplesmente invejável, musicalmente falando. James está insano, com a voz impecável (algo que não é exatamente admirado por todos, já que seus exercícios para melhorar vocalmente acabou com aquela voz característica do thrash que ele tinha) além de uma presença de palco fantástica. O resto da banda se mostra em sintonia tanto entre si quanto com o maestro Michael Kamen e os talentosos músicos da orquestra.

Por mais que muita gente tenha achado estranho, S&M é quase irretocável. As músicas ganharam um poder e grandiosidade impressionantes e, do início ao fim do show, a sensação é de estar vendo algo épico. A começar pela recriação da imortal “The Ectasy of Gold” de Ennio Morricone pela orquestra, a introdução que é marca registrada nos shows da banda. Depois disso, pela ocasião especial, o setlist segue uma ordem pouco usual e o  Metallica já entra em cena para se unir aos músicos liderados por Kamen em uma versão simplesmente arrepiante e devastadora de “The Call of Ktulu” (que rendeu um Grammy para a banda, diga-se de passagem).

Antes mesmo que dê tempo para respirar, “Ktulu” já é emendada em “Master of Puppets”, nada menos que o maior clássico da banda. Já aqui, acontece algo que se repetiria em algumas outras músicas: por mais incrível que tenha ficado (em “Master”, o resultado é espetacular), não existe bem uma união entre os dois mundos. É como se a banda estivesse tocando e uma orquestra gigante fizesse o mesmo atrás, mas a seu próprio modo. Não muda o fato de que o resultado é bonito, mas não se compara a outros momentos onde Metallica e orquestra parecem uma banda só.

Um belo exemplo de quando isso acontece é logo a seguir, em “Of Wolf and Man”, em que um arranjo arrasador de cordas reinventa sua crua introdução e segue pelo resto da música  como se ela tivesse sido concebida dessa maneira lá no começo dos anos 90. Efeito parecido ocorre com a clássica “For Whom the Bell Tolls”, que ganha uma versão apoteótica (e maravilhosa). Mas nenhuma das músicas foram tão beneficiadas pela orquestra como as de Load/ReLoad. Com incontáveis defeitos já citados anteriormente, elas ganham nova vida aqui, ficando um pouco menos vazias e com um poder mais próximo do que o Metallica é capaz de ter nas suas canções.

“Fuel”, por exemplo, ainda que continue com sua letra imbecil, tem o instrumental reformulado numa versão simplesmente matadora, que torna a música quase irreconhecível (além do que, a música sempre funcionou melhor ao vivo, já que a energia artificial da versão de estúdio é genuína nos palcos), o mesmo acontece com “The Memory Remains” e até com a fraquíssima “Devil’s Dance”. Ao mesmo tempo, “Hero of the Day” perde um pouco daquela aura “pop-U2” ao ganhar um ritmo mais cadenciado e “Until it Sleeps” tem um ar ainda mais sombrio e enigmático.

A banda ainda tem tempo de incluir duas músicas inéditas, criadas só para o projeto, que, obviamente, são as que traduzem mais perfeitamente a ideia de Metallica e orquestra terem que soar como uma coisa só. “No Leaf Clover” (a melhor, com um solo de arrepiar) e “-Human” podem até ter letras pouco inspiradas (a da primeira não faz o menor sentido), mas tem uma riqueza instrumental impressionante, ao integrar perfeitamente cordas e metais e o som das guitarras, baixo e bateria.

Claro que, como quase qualquer álbum da banda (salvo Master of Puppets), nem tudo é perfeito. “Nothing Else Matters” já era uma colaboração de Kamen com o Metallica, portanto, sua versão nesse show nada mais é do que a orquestra tocando no mesmo volume que a banda. Soa mais como uma chance perdida de recriar “Fade to Black” ou “The Unforgiven”. “Wherever I May Roam” e “Sad But True” (duas que estão entre as minhas favoritas) são outras em que a orquestra é mais uma adição esdrúxula do que qualquer outra coisa.

Para encerrar, três dos maiores clássicos da carreira da banda: “One”, em uma versão curiosa, porque a banda parece mais contida e ao mesmo tempo, a música soa mais épica com o novo arranjo, “Enter Sandman”, a única realmente estranha, já que o resultado foi uma bagunça sem precedentes e por fim, “Battery”, momento em que a orquestra se rende de vez a um ritmo insano, no que provavelmente foi a música mais difícil de recriar (é a única do set que é genuinamente thrash).

S&M é um dos shows mais grandiosos que o Metallica já fez e também um dos mais interessantes. Foi talvez uma das melhores ideias que tiveram nos anos 90, já que, por mais irônico que possa parecer, foi uma bem comportada orquestra que mostrou de uma forma sincera como já não era mostrado a alguns anos pela própria banda, o poder inabalável das músicas do Metallica, e o seu potencial de impressionar.

Nota: 8
Preste atenção em: “The Call of Ktulu” é uma das coisas mais impressionantes que você vai ouvir em um bom tempo. “For Whom the Bell Tolls” e a inédita “No Leaf Clover” também são incríveis.
Para pular depois da primeira ouvida: Eu ainda estou me perguntando o que “Devil’s Dance” está fazendo nesse show.

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Foram anos estranhos, não só para o Metallica, mas para o rock e o heavy metal como um todo, mas a década enfim havia acabado. Os anos 2000 começariam de forma simbólica, com bandas ressurgindo de forma triunfal num necessário revival dos anos 80 que ajudou a consolidar todas essas bandas para a nova geração até hoje. Ficaria tudo bem… menos para o Metallica, que se envolveria na primeira grande polêmica em relação a pirataria na internet, com o caso Napster e faria um álbum tão ruim que quase ajudou a sepultar a carreira da banda. Seriam tempos sombrios, por uns bons anos…

Mas quanto a isso, melhor deixar para o próximo post, com a última parte da discografia do Metallica. A jornada está chegando ao fim!

2 comentários sobre “Comentando discografias: Metallica – Parte 4: Nostalgia, ambição e o novo século

  1. Nesses dois álbuns, o que eu mais presto atenção (ou o que mais me chama atenção) é a presença do Newsted, em primeiro lugar pela capa meio que polêmica do Garage, dele a frente sozinho, e o restante da banda com caras de “bad guy” dizendo “seu mecânico de merda” da uma certa revolta pessoal, e, no segundo pela presença dele no S&M, dele mega empolgado com uma presença de palco insana e uivando em Of Wolf And Man, acho do caralho. E quanto aos álbuns, não sou muito fã do Garage, mas em compensação o S&M arrebenta com os clássicos e junto de uma orquestra, e desde então nem o Serj Tankian conseguiu essa proeza.

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